A anterioridade do crédito em fraude contra credores em contratos de abertura de conta com contratação de crédito rotativo.
Luiza Haruko Ishie Macedo
Mestranda na área de Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada do escritório Medina Guimarães Advogados. E-mail:
Fernanda Rodrigues Endrissi
Pós-graduanda em Direito Empresarial Aplicado à Era Digital pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada do escritório Medina Guimarães Advogados. E-mail:
Na esfera do direito das obrigações, vigora o princípio de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, o qual é um limitante à faculdade do devedor de dispor deliberadamente de seus bens, podendo fazê-lo apenas na medida em que tal disposição não implique em sua insolvência.
Se o devedor já insolvente, por meio de negócio jurídico, se desfaz do seu patrimônio ou fica reduzido à insolvência, prejudicando, desta forma, seus credores, sobre tal ato é cabível a alegação de fraude contra credores, a teor do que dispõem os arts. 158 e seguintes do Código Civil. O meio processual adequado para tanto é o ajuizamento de Ação Pauliana, a qual está condicionada ao preenchimento de três requisitos, conforme entendimento pacificado do e. STJ, quais sejam: a) anterioridade do crédito; b) eventus damni; e c) scientia fraudis. (STJ, 4.ª T., AgInt no REsp 1294462/GO, rel. Min. Lázaro Guimarães, j. 20.03.2018).
O requisito relativo ao eventus damni está relacionado à comprovação de que o ato de disposição patrimonial reduziu o devedor à insolvência ou a agravou. Youssef Said Cahali (Fraude contra credores: fraude contra credores, fraude à execução, ação revocatória falencial, fraude à existência fiscal e fraude à execução penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 136) destaca que “é insolvente o devedor, quando a soma do ativo de seu patrimônio é inferior ao passivo, caracterizando-se o estado de insolvência pelo fato de não ter o devedor bens suficientes para lhe cobrir as dívidas”.
Por sua vez, a scientia fraudis, tal como consolidado pela jurisprudência, está relacionada à comprovação de que o terceiro adquirente tem conhecimento sobre a situação do estado de insolvência do devedor.
Colocando uma lupa no requisito da anterioridade do crédito, observa-se que o art. 158, § 2.º, do CPC dispõe que: “só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”, condicionando o interesse e a legitimidade para o ajuizamento da Ação Pauliana àqueles credores que já teriam crédito constituído ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico tido por fraudulento. É dizer: o termo para se conferir a (in)existência da anterioridade do crédito é a data da emissão do título de crédito em cotejo com a data do ato que se pretende declarar a ineficácia ou anular, o que autoriza a conclusão de que se trata de requisito objetivo.
Em se tratando de contratos de abertura de conta com contratação de crédito rotativo, ou seja, quando há concessão de limite na conta corrente do cliente e que possui a renovação do crédito e das garantias fidejussórias de forma automática por meio da reutilização do crédito em conta corrente, é desnecessário que, na data em que houve o ato fraudulento, o saldo esteja negativo na conta corrente vinculada à operação. Isso porque a anterioridade do crédito é auferida pela data da contratação e, portanto, concessão do crédito, sendo desnecessária a comprovação de inadimplência. Denota-se o que a doutrina de Yussef Said Cahali[1]diz sobre o tema:
“[...] a anterioridade do crédito se determina pela causa que dá origem ao referido crédito, causa da qual surge a sua vida jurídica; para que um crédito seja considerado anterior ao ato fraudulento, basta que seu princípio exista antes da conclusão desse ato, não devendo confundir-se o crédito em si com o documento ou a sentença que apenas o reconhece e o declara; afirmando-se que ’para provar a existência do crédito não é necessária a instauração do procedimento executivo’, e que ‘o que legitima o exercício da ação pauliana não é a existência de título já vencido e, portanto, exigível, mas a anterioridade do débito assumido em relação ao ato de liberalidade” (g.n)
A contratação do crédito é o marco para aferir a sua anterioridade em relação ao negócio jurídico tido por fraudulento. A partir do momento em que o crédito é tomado, via de regra, no contrato de abertura de conta corrente, há a opção de fornecimento de crédito rotativo prevendo, inclusive, a sua renovação automática. Por outro lado, a forma e o momento em que ele será efetivamente utilizado se tratam de liberalidades do devedor, sendo tais fatores irrelevantes para o preenchimento do requisito da anterioridade previsto pelo Código Civil.
Portanto, entender que a anterioridade apenas estaria presente nas hipóteses em que o saldo na conta corrente (vinculada a operação de crédito rotativo) estivesse negativa, seria desvirtuar a objetividade de tal requisito, facultando ao devedor a possibilidade de realizar o esvaziamento patrimonial em data que melhor lhe conviesse.
O STJ analisou situação na qual o contrato de abertura de crédito em conta corrente fora firmado anteriormente ao inadimplemento. Ainda que em decisão que reconhecera a inadmissibilidade do recurso, o Tribunal Superior entendeu pela presença da anterioridade do crédito no caso concreto:
“As dívidas em questão têm como origem contratos de abertura de crédito em conta-corrente, popularmente conhecido como ""cheque especial"". Sendo assim, satisfaz-se o primeiro requisito, pois a CEF é credora quirografária do primeiro Réu.
O débito decorrente de referidos contratos foi contraído no decorrer de sua vigência (dos contratos), em virtude da utilização do crédito que foi disponibilizado ao Réu, sendo consolidado em data anterior aos atos de doação (segundo requisito), os quais, inclusive, ocorreram depois da prolação do despacho positivo que determinou a citação dos executados nas execuções que foram posteriormente convertidas em ações monitórias.
O dano ao direito do credor se mostra evidente, na medida em que a insolvência atinge diretamente sua pretensão de receber o crédito decorrente dos contratos de ""cheque especial"", pretensão essa externada com o ajuizamento da ação monitória e posterior execução (terceiro requisito).” (STJ, 3.ª T., REsp n. 971.884, Decisão monocrática proferida pelo Min. Sidnei Beneti, DJe 06.08.2010, g. n.)
O TJPR e o TJSP, ao julgarem recursos oriundos de ações paulianas cuja anterioridade do crédito era baseada em contratos de abertura de conta corrente com contratação de crédito rotativo, consideraram preenchido tal requisito tomando-se como termo inicial a data de assinatura do contrato e não a data de em que o saldo da conta passou a ser negativo (vide TJPR, AI n. 0016989-43.2022.8.16.0017, 15.ª Câmara Cível, Des. Jucimar Novochadlo, J. 06.09.2023; e TJSP, Ap.Cív. n. 9060767-22.1998.8.26.0000, 11.ª Câm. ex-TASP, , rel. Des. Heraldo de Oliveira, j. 05.09.2002).
Em conclusão, inclina-se ao entendimento de que, para fins de preenchimento do requisito da anterioridade do crédito em Ação Pauliana, o que deve prevalecer, no comparativo de datas, é que a celebração do negócio jurídico (que se pretende a declaração de ineficácia) seja anterior ao fator que deu origem ao crédito, qual seja: o contrato de abertura de conta corrente com concessão e contratação de crédito rotativo.
[1] CAHALI, Yussef Said. Op. Cit. 2013.
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