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Os bens digitais e a figura do "inventariante digital": Análise crítica do recente acórdão proferido pelo STJ no julgamento do REsp 2.124.424/SP

por José Miguel Garcia Medina e Mariana Barsaglia Pimentel

Um dos mais recentes e instigantes desafios do Direito Sucessório brasileiro contemporâneo gira em torno da figura da "herança digital". Diversos questionamentos surgem sobre esta temática: Como se dá a transmissão de criptomoedas após a morte? Há direito à herança de "canais" de Youtube ou de redes sociais (como o Instagram)? Com quem fica o celular ou o computador pessoal da pessoa falecida? Os herdeiros têm acesso ao conteúdo dos aparelhos eletrônicos de forma irrestrita?

O ordenamento jurídico - que não acompanha as demandas sociais no ritmo em que elas se impõem - não apresenta uma resposta precisa para estas perguntas. Apesar de tramitar um PL no Senado Federal que trata, em parte, desta problemática (o PL 4/25, que tem por finalidade atualizar o CC), a legislação vigente ainda é silente.

A solução para os casos concretos, portanto, ao menos por ora, está nas mãos dos estudiosos do Direito (que produzem livros e artigos científicos sobre o assunto¹) e do Poder Judiciário.

Recentemente, em julgamento paradigmático, o STJ enfrentou o tema da herança digital² e definiu "qual o procedimento para obtenção de informações acerca da existência de bens digitais contidos nos aparelhos eletrônicos de titularidade do falecido, face ao desconhecimento da senha de acesso".

No caso em questão, a herdeira solicitou a expedição de ofícios à Apple, visando acessar os dados gravados no iPad da pessoa falecida - equipamento que, em vida, era utilizado pela sua titular para movimentar recursos financeiros e armazenar informações patrimoniais.

Tanto o juiz de 1º grau, quanto o TJ/SP entenderam que a solução da celeuma - que demandaria maiores esclarecimentos e análise de dados técnicos (e, portanto, dilação probatória) - não seria compatível com o rito especial do processo de inventário (por se tratar de questão de "alta indagação") e que a questão deveria ser dirimida em ação autônoma.

No STJ, contudo, uma solução mais criativa foi encontrada. Em voto proferido pela ministra Nancy Andrighi, seguido pela maioria³, definiu-se que o acesso dos herdeiros aos bens digitais não se caracteriza como questão de alta indagação e, por isso, deve ser analisada de forma incidental ao inventário, com a adoção de "atos práticos-executórios com o fim de identificar, classificar e avaliar os bens digitais encontrados no computador do falecido".

Nos termos decididos pela 3ª turma, o caminho a ser percorrido seria o seguinte: (i) "os herdeiros que não detenham o conhecimento da senha de acesso ao computador do falecido deverão postular ao juízo do inventário a abertura do equipamento por meio de pedido instrumentalizado em um incidente processual que terá por objeto a identificação, a classificação e a avaliação dos bens digitais encontrados nos aparelhos eletrônicos que pertenciam ao falecido"; (ii) "uma vez instaurado o incidente, há necessidade de detida análise pelo órgão julgador, a fim de identificar o grau de transmissibilidade dos bens digitais"; (iii) "o incidente processual, devidamente apensado aos autos (associado à aba do processo eletrônico) de inventário, será conduzido pelo juiz, paralelo ao inventário, com assessoria de profissional, com expertise digital adequada para buscar bens digitais no computador do falecido, que por ora pode-se denominar inventariante digital"; (iv) "o inventariante digital terá acesso franqueado a todos os bens digitais do falecido para preparar minucioso relatório de tudo o que encontrar no computador. Referido relatório deverá ser encaminhado ao juiz do inventário, que fará a identificação e classificação dos bens digitais encontrados e, após, decidirá quais serão transmissíveis e quais não poderão ser transmitidos aos herdeiros, porque violam os direitos da personalidade do falecido ou de terceiros".

O acórdão criou a figura do inventariante digital, que, observando o dever de confidencialidade, terá acesso a todos os bens digitais encontrados nos aparelhos eletrônicos da pessoa falecida e deverá identifica-los, permitindo que o juiz da causa decida quais bens digitais serão, ou não, transmitidos aos herdeiros. A medida, ao mesmo tempo em que garante a transmissão do patrimônio integral do de cujus, preserva a intimidade e privacidade da pessoa falecida.

A solução encontrada pelo STJ parece condizente com os anseios da sociedade contemporânea, que clama por soluções adequadas às celeumas dos tempos modernos.

                                     

¹ Podendo ser citadas como referências sobre a temática as autoras Livia Teixeira Leal e Ana Carolina Brochado Teixeira.

² STJ, Recurso Especial n. 2.124.424/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 09.09.2025.

³ Em voto-divergente, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva posicionou-se no sentido de que:

"Em síntese, respeitado o entendimento da ilustre Relatora, entendo que deva prevalecer o princípio da sucessão universal, previsto no art. 1.784 do Código Civil. Assim, divirjo da necessidade de determinar a instauração de incidente processual para classificar os bens digitais em existenciais e patrimoniais e de nomeação da figura do "inventariante digital".

Considero que no presente caso seja mais adequado reconhecer apenas que (i) os atos executórios necessários à identificação e ao acesso ao acervo de bens digitais dos falecidos devem ser realizados preferencialmente no juízo do inventário e, portanto, não podem ser consideradas questões de alta indagação, exceto se, de fato, comprovada a necessidade da produção de outras provas para além da documental; e (ii) o juízo do inventário poderá instaurar incidente processual apenas para identificação e avaliação de bens digitais, com a possibilidade de nomeação de um profissional com experiência neste tipo de ativo para auxiliar o inventariante, se necessário".


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