A percepção do conflito no sistema de Justiça Brasileiro: o caminho até então percorrido
As formas de tratamento de conflitos no âmbito do Sistema de Justiça brasileiro são definidas pelo Estado. É por meio dele, inclusive, que as soluções consensuais de resolução de conflitos foram inseridas no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, o que se entende por conflito e a forma adequada para o seu tratamento, é tarefa árdua de ser feita e, aliás, de ser definida.
Apesar de, no Direito, o conceito de “conflito” estar relacionado à “pretensão resistida” e ao que se entende por litígio, é relevante que o conflito seja entendido em sua concepção ampla, no sentido que de uma “diferença de interesses”, podendo ser resistida ou não.
Intuitivamente, os indivíduos consideram o conflito como fenômeno negativo das interações sociais, relacionando-o a perdas e danos para ao menos uma das partes relacionadas. Noutra perspectiva, o conflito pode ser percebido com maior naturalidade, por ser oriundo das relações humanas.
Em outras palavras, a heterogeneidade inerente às sociedades e indivíduos gera conflitos inevitáveis. A gestão eficaz dessas divergências exige o desenvolvimento de habilidades de diálogo e negociação, visando à construção de consensos e a promoção da coexistência pacífica. Assim, o conflito deve ser acolhido, percebido e dialogado, de modo que suas características positivas também sejam sopesadas. Assim, é preciso vislumbrar as duas perspectivas: a visão construtiva e destrutiva acerca do conflito, já que, a despeito de o evitarmos, a sua existência permite a modificação de status quo:
O conflito previne estagnações, estimula interesse e curiosidade, é o meio pelo qual os problemas podem ser manifestados e no qual chegam as soluções, é a raiz da mudança pessoal e social. O conflito é frequentemente parte do processo de testar e de avaliar alguém e, enquanto tal, pode ser altamente agradável, na medida em que se experimenta o prazer do uso completo e pleno da sua capacidade. De mais a mais, o conflito demarca grupos e, dessa forma, ajuda a estabelecer uma identidade coletiva e individual; o conflito externo geralmente fomenta coesão interna. (Deutsch 2004, p. 34).
A mudança da perspectiva destrutiva para a construtiva sobre o que se entende por conflito é de suma relevância para que os agentes econômicos e indivíduos estejam propensos a visualizar as formas consensuais de conflitos com uma possibilidade.
Para tanto, é preciso despolarizar as partes, na tentativa de modificar o contexto competitivo para o cooperativo. Entende-se por despolarização “o ato ou efeito de não perceber um diálogo ou um conflito como se houvesse duas partes antagônicas ou dois polos distintos (um certo e outro errado)” (CNJ, 2016, p. 53).
Deutsch (2004, p. 35) enfatiza a relevância em diferenciar os termos conflito e competição, eis que nem todo conflito reflete uma competição. O autor, responsável por desenvolver a classificação de conflitos entre processos destrutivos e construtivos, destaca que a competição envolve um conflito em que os objetivos das partes estão em oposição, de modo que o sucesso de uma parte tende a diminuir à medida que o sucesso da outra parte aumenta. Por sua vez, o conflito pode ocorrer mesmo quando não haja incompatibilidade de objetivos, de modo que ambas as partes tenham interesses coincidentes.
Abordar o conflito dentro da estratégia construtiva e de cooperação, na tentativa de utilizá-lo como meio de fortalecimento das relações sociais, muito se alinha ao que se denomina como “terceira onda de acesso à Justiça”, desenvolvida por Cappelletti e Garth (1988), no final dos anos 70. Considerando os desafios enfrentados para efetivar os Direitos, essas ondas representam a evolução do foco para concretizar o acesso à Justiça. A terceira onda de acesso à Justiça representa o enfoque mais amplo do próprio conceito de Justiça, com a valorização de outros meios de tratamento de conflitos, para além do caminho tradicional do processo judicial.
Os métodos autocompositivos passam a ser vistos como formas adequadas de resolução de conflito, ampliando os enfoques sobre o que se entende por acesso à Justiça: um mais restrito, relacionado ao acesso ao Poder Judiciário e o segundo relacionado à capacidade do Estado em fornecer soluções jurídicas justas, relacionando o acesso com a ordem de valores e direitos fundamentais – o que não implica necessariamente o acesso ao Poder Judiciário. Essa evolução histórica, embora não unânime, amplia o conceito de acesso à Justiça. Corrêa e Gonçalves (2022, p. 306) lecionam que:
A mencionada abertura dogmática pretendeu proporcionar mudanças na cultura jurídica brasileira de tratamento dos conflitos, outrora, essencialmente, contenciosa ou denominada de “cultura da sentença”, cujos marcos representativos são a jurisdição e o método do processo judicial, para a inserção do modelo denominado de “cultura do consenso”, cuja base é a autocomposição e a prática da mediação.
A Ordem Institucional brasileira começa a recepcionar o tema, mundialmente discutido, somente no final dos anos 80 – época em foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) e a versão traduzida da obra de Cappelletti e Garth (1988) foi introduzida nos estudos acadêmicos e políticos.
Frente ao monopólio do tratamento de conflito pelo Estado, as normas sobre soluções alternativas de conflito começam a ganhar destaque no âmbito institucional formal brasileiro somente em 2010, com a Resolução n. 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a Política de Tratamento adequado dos Conflitos.
Dentre a exposição de motivos para sua criação, merece especial destaque a atenção ao preceito institucional relativo ao acesso à Justiça, “considerando que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa.” (CNJ, 2010).
A Resolução n. 125/2010 inova no que diz respeito a temática sobre o “acesso à Justiça”, diante da modificação sobre a sua abordagem no âmbito institucional brasileiro, que passa a superar a ideia de que acesso à Justiça se limita a acesso ao Poder Judiciário. Para Watanabe (2022, p. 47):
A política judiciária adotada pela Resolução 125 trouxe uma profunda mudança no paradigma dos serviços judiciários e por via de consequência atualizou o conceito de acesso à justiça, tornando-o muito mais acesso à ordem jurídica justa, e não mero acesso aos órgãos judiciários para a obtenção de solução adjudicada por meio de sentença.
É neste cenário que ganha relevância no Brasil o ideal de meios adequados para solução de controvérsias, que passa a abranger tanto os meios heterocompositivos (processo judicial e arbitragem) e autocompositivos (negociação, mediação e conciliação).
Dentro da Lei 13.105/2005 (Código de Processo Civil), as soluções alternativas também foram recepcionadas como técnica a ser adotada. O art. 334 do CPC estabelece a designação de sessão de conciliação ou mediação (a depender da natureza do conflito), quando recebida a petição inicial, sendo facultado ao autor e ao réu a manifestação sobre o seu desinteresse em realizar o ato autocompositivo, a teor do art. 334, § 5.º do CPC. Complementando a tríade de leis que versam sobre os meios autocompositivos no âmbito institucional formal brasileiro, houve a promulgação da Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) que versa especificamente sobre essa forma de tratamento de conflito.
Denota-se, então, a tentativa de implementação de um sistema processual que preze pela cooperação entre as partes. Nunes (2017, p. 131) destaca que “o modelo cooperativo processual se caracteriza justamente por equilibrar o princípio da autonomia da vontade das partes envolvidas e o poder exercido pelo Órgão Jurisdicional”.
Em conclusão, um longo caminho já foi percorrido para que o conflito seja tratado de forma adequada dentro do sistema de Justiça brasileiro, mas ainda há muito a se modificar. Os meios consensuais de resolução de conflitos ainda são vislumbrados com olhares ressabiados – fruto de uma história baseada na concessão do poder ao Judiciário para a solução da controvérsia. Parece necessária a criação de incentivos para a utilização de meios consensuais – de história e implementação recentes, apesar de exitosa.
Neste sentido, inclina-se ao entendimento de que a resolução de conflitos privados deve ser prioritariamente solucionada por meio da negociação das partes envolvidas – as quais são as principais interessadas e aquelas que possuem o maior número de informações sobre os impactos que determinado problema pode ocasionar. O incentivo à busca de soluções caminha ao encontro com a ideia de desjudicialização do conflito, atribuindo às próprias partes a tentativa de resolução da controvérsia.
Estes meios (ainda) ditos como alternativos deveriam ser vistos como efetivos métodos para dar tratamento aos conflitos de interesses e não somente como uma das alternativas para solucionar a crise da morosidade da Justiça, de modo que a redução do número de processos será uma das consequências da utilização dos novos meios de solução de conflitos e não a sua própria finalidade (Watanabe, 2022, p. 46).
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Referências Bibliográficas
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e revisão de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988
CNJ - Conselho Nacional De Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília, DF: CNJ, 2010.
CNJ - Conselho Nacional De Justiça. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2015/06/f247f5ce60df2774c59d6e2dddbfec54.pdf>. Acesso em 13 ago. 2024.
CORRÊA, Cristina Mendes Bertoncini; GONCALVES, Jéssica. Obstáculos históricos e simbólicos à transformação da cultura de tratamento dos conflitos da sentença em solução consensual no sistema jurídico brasileiro. In: José Sérgio da Silva Cristóvam; Norma Sueli Padilha; Ubaldo Cesar Balthazar. (Org.). Direito, Estado e Sociedade Homenagem aos 50 anos do PPGD/UFSC. 1ed., v.1. São Paulo: Matrioska, 2022. p. 293-308. Disponível em: <https://www.matrioskaeditora.com.br/files/ugd/427f5f8620a42ea89e456085a6ad2ab940fc80.pdf>. Acesso em 22 abr. 2024.
DEUTSCH, Morton. A resolução do conflito: processos construtivos e destrutivos. GOMMA DE AZEVEDO, André (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação, Vol. 3. Brasília: Grupos de Pesquisa UNB, 2004. Disponível em: < https://arcos.org.br/content/files/2022/07/Estudos-em-Arbitragem--Media--o-e-Negocia--o3.pdf>. Acesso em 13 ago. 2024.
NUNES, Juliana Raquel. A importância da mediação e da conciliação para o acesso à justiça: uma análise à luz do CPC. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e solução pacífica dos conflitos de interesse. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL,Tícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: mediação, conciliação e outros meios adequados de solução de conflitos. 3.ed. rev., atual., ampl., São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. p. 41-48.
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