Análise Crítica do REsp 2.179.688: Possibilidade de Sucessão Processual de Sociedade Empresária Dissolvida Irregularmente
por Gabriel Dias Curioni¹
O cenário de recuperação de crédito no Brasil é catastrófico. Dados da Serasa Experian apontam que o número de empresas inadimplentes bateu recorde histórico, representando 31,6% dos negócios ativos do país [2]. A taxa de recuperação de crédito, de acordo com o Banco Central em análise acerca do elevado patamar dos juros no país, é de apenas 18,2 centavos por dólar [3].
Para além da realidade macroeconômica, que certamente contribui para este cenário desanimador, observa-se com certa frequência que a práxis jurídica tem prejudicado ainda mais a tarefa do credor de reaver seu crédito. Isto porque, as práticas de blindagem e de evasão patrimonial têm sido cada vez mais pulverizadas, em movimento não acompanhado pelo ordenamento jurídico.
Um dos grandes desafios práticos para a efetividade da tutela jurisdicional executiva no Brasil é o fenômeno da informalidade. Em específico neste texto, enfrenta-se o tema da dissolução irregular da sociedade empresária. Nestes casos, o credor (civil), após anos de tramitação processual, vê-se diante de um CNPJ que, embora formalmente ativo, já não possui sede, atividade ou patrimônio. A questão que se impõe é: há como responsabilizar os sócios que simplesmente "desapareceram", deixando uma empresa formalmente ativa, contudo, sem qualquer atividade?
O primeiro fator a ser observado é a ausência de qualquer disposição legal acerca da sucessão processual de pessoa jurídica em caso de extinção da sociedade empresária, seja de forma regular ou irregular.
Não se pode confundir, adianta-se, a sucessão processual com a desconsideração da personalidade jurídica – forma de atingir o patrimônio de sócio da pessoa jurídica executada. Esse instituto, previsto no art. 50, do Código Civil, é medida excepcional a ser aplicada somente nos casos em que verificado o abuso da personalidade jurídica “caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.
Em que pese a ausência de previsão expressa sobre a sucessão processual para os casos de dissolução regular da sociedade empresária, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) construiu uma jurisprudência sólida sobre a matéria. Nos casos em que se encerra regularmente o procedimento de extinção da sociedade empresária, com a completa liquidação e distribuição do patrimônio, admite-se a possibilidade de sucessão processual da pessoa jurídica por seu(s) antigo(s) sócio(s) até o limite do patrimônio distribuído.
O REsp 2.082.254/GO [4] é um exemplo paradigmático desse entendimento. A Terceira Turma, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, consolidou a tese de que a extinção voluntária (regular) da pessoa jurídica, devidamente averbada, equipara-se à morte da pessoa natural e, portanto, o processo executivo poderia continuar contra os ex-sócios. Aplica-se, então, analogicamente, o art. 110 do CPC, que estabelece a sucessão processual da pessoa natural morta.
Da leitura da decisão depreende-se que o tribunal separa, com precisão, a sucessão processual da desconsideração da personalidade jurídica. A sucessão ocorre porque a parte (pessoa jurídica) deixou de existir, fática e formalmente. A desconsideração, por outro lado, é uma sanção para o abuso (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) que exige a manutenção da personalidade jurídica, apenas suspendendo sua eficácia para o caso concreto (em que a desconsideração foi pleiteada).
Destaca-se, ademais, que o acórdão estabelece que a responsabilidade dos sócios sucessores se limita ao património líquido positivo que efetivamente receberam na partilha, em linha com o art. 1.110 do CC.
Até aqui, o STJ age com acerto: reconhece a possibilidade de equiparação da "morte" da pessoa jurídica com a morte da pessoa natural e aplica a sucessão processual, respeitando a natureza da responsabilidade limitada.
O problema reside na informalidade que ainda se verifica em grande parte das relações societárias no país: a prática aponta que, em grande parte dos casos, os sócios das sociedades empresárias nunca realizam o procedimento de extinção da sociedade empresária com liquidação do passivo/ativo e a devida baixa do contrato social. O devedor não segue o procedimento legal de liquidação; ele simplesmente "some".
É precisamente este cenário que foi analisado no REsp 2.179.688/RS [5], julgado pela mesma Terceira Turma, mas que chegou a uma conclusão, no mínimo, perigosa.
Neste segundo caso, o credor tentava a sucessão processual da pessoa jurídica após constatar fatos clássicos da dissolução irregular da sociedade empresária: a empresa não foi localizada no seu endereço; seu CNPJ encontrava-se "inapto" perante a Receita Federal; e tampouco era possível localizar qualquer indício de existência de patrimônio em nome da pessoa jurídica.
O TJRS [6] negou provimento ao Agravo de Instrumento, sob fundamento de que seria necessária a instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica para atingir o patrimônio dos sócios. Os credores, então, interpuseram Recurso Especial sob argumento de que o acórdão teria violado o art. 110 do CPC, e estaria em dissonância com o entendimento fixado no supracitado REsp 2.082.254/GO e no REsp n. 1.784.032/SP.
O STJ negou provimento ao Recurso Especial, mantendo a decisão do TJRS. A linha argumentativa adotada como fundamento do acórdão é de que só haveria possibilidade de sucessão processual da pessoa jurídica caso comprovada a dissolução da sociedade empresária e a extinção da personalidade jurídica.
Destacou-se, com especial atenção, que as situações fáticas narradas no caso “não se equiparam à dissolução regular da pessoa jurídica, podendo ser, inclusive, revertidas dentro de certo prazo”. Nos termos da decisão, a inaptidão junto a Receita Federal, a ausência de localização da sede e ausência de localização de bens seriam apenas “indícios do encerramento das atividades”.
Neste sentido, concluiu-se que “o encerramento regular da pessoa jurídica pressupõe ter sido liquidado seu patrimônio, com a distribuição de eventual saldo entre os sócios, valores esses que poderão responder pela dívida da pessoa jurídica extinta”, uma vez que “Sem a prova da "morte", não é possível deferir a sucessão”.
Neste ponto, parece ser necessário um avanço do entendimento do STJ (ou mesmo da legislação). Ao exigir a "prova da extinção da personalidade jurídica" (que, no entender da Corte Superior, seria o distrato e a baixa formal na Junta Comercial), o tribunal ignora a própria natureza da discussão. Diz-se que a dissolução é irregular precisamente porque os sócios não promoveram a extinção formal. É um contrassenso lógico exigir a prova de um ato regular para comprovar um fato irregular.
Não se pretende discutir o caso concreto objeto de deliberação nos autos do REsp 2.179.688/RS. A análise fático-probatória, naquele contexto, poderia efetivamente demonstrar a não comprovação do encerramento das atividades da pessoa jurídica executada. O entendimento sedimentado, todavia, é perigoso, justamente por abrir margem de interpretação no sentido de que somente nos casos de dissolução regular da sociedade empresária há possibilidade de sucessão processual.
Apesar de o próprio julgado do STJ abrir margem para a linha argumentativa de que haveria possibilidade de responsabilização dos sócios por dissolução irregular, não fica claro o entendimento adotado acerca do tema. Isto pois há apenas breve menção ao fato de que, no âmbito tributário, haveria responsabilização dos sócios em razão de infração à lei, nos termos do Tema 981 do STJ [7].
A tese sedimentada no caso de execução fiscal mostra-se acertada e não há razão para não ser replicada no caso de execução civil. Em caso de presunção do encerramento das atividades da pessoa jurídica, o que deve se dar por meio de produção probatória nos autos, a obrigação de pagamento deve ser estendida aos (ex)sócios.
Se não há previsão expressa na legislação civil, o melhor caminho, entende-se, é uma leitura conjunta do art. 1.080 do CC, com o art. 110 do CPC. Este dispositivo já é utilizado no caso de dissolução regular, como demonstrado no REsp 2.082.254/GO; o art. 1.080 do CC, por sua vez, deve ser aplicado por estabelecer que existe responsabilidade ilimitada de quem expressamente aprovou as deliberações do contrato social. Assim, se a lei impõe um procedimento para a extinção da sociedade empresária (dissolução, liquidação, partilha e extinção), ao simplesmente "desaparecer" com a empresa sem saudar os credores, os sócios-administradores praticam uma "deliberação infringente da lei".
Para além de demonstrar-se a solução adequada em uma análise interna do Direito, a solução ora defendida equipara minimamente as execuções civis às execuções fiscais, que gozam de tratamento diverso.
Demais disso, ao manter-se o entendimento de que há sucessão processual em caso de dissolução regular da sociedade empresária e não há em caso de dissolução irregular, o STJ cria um paradoxo à efetividade processual e incentiva ainda mais a informalidade: aquele que agir de forma regular, extinguindo a sociedade empresária que
não apresenta mais qualquer atividade, acaba respondendo pelo passivo existente; aquele que age na informalidade e apenas abandona a empresa, não tem seu patrimônio atingido.
Em síntese, a jurisprudência, como posta, cria um incentivo perverso: ela blinda o património do sócio que age na ilegalidade e pune aquele que tenta agir corretamente. Trata-se de premiar a conduta irregular.
Vale mencionar que, apesar de ainda com certa timidez, é possível observar julgados nos e. Tribunais Pátrios que replicam o argumento aqui defendido, no sentido de que a dissolução irregular da sociedade empresária deve levar à sucessão processual aos sócios que não a extinguiram formalmente. Tem-se como exemplo, no TJSP, os Agravos
de Instrumento de n. 2098872-45.2025.8.26.0000 [8] e n. 23810734720248260000 [9], e, no TJPR, os Agravos de Instrumento de n. 00081054220238160000 [10] e n. 00753743520228160000 [11].
Assim, respondendo à questão posta inicialmente, a solução técnica correta para o caso de dissolução irregular da sociedade empresária não é negar a sucessão processual, mas sim aplicá-la (art. 110 CPC) e, com base no ato ilícito (Art. 1.080 CC), afastar a limitação da responsabilidade do ex-sócio.
[1] Advogado da área de Contencioso Cível do Escritório Medina Guimarães Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail:
[2] FECOMERCIOSP. Crise silenciosa: Brasil registra recorde de recuperações judiciais e inadimplência entre empresas. 21 maio 2025. Disponível em: https://www.fecomercio.com.br/noticia/crise-silenciosa-brasil-registra-recorde-de-recuperacoes-judiciais-e-inadimplencia-entre-empresas. Acesso em: 9 nov. 2025.
[3] NETO, Roberto Campos. Atuação do Banco Central do Brasil. 21 abr. 2023. Apresentação. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_RCN_%20LIDE_VPUB1.pdf. Acesso em: 9 nov. 2025.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Terceira Turma. Recurso Especial n. 2.082.254/GO. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 12 set. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 15 set. 2023.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Terceira Turma. Recurso Especial n. 2.179.688/RS. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 02 set. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 05 set. 2025.
[6] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Décima Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 5185507-36.2023.8.21.7000. Relator: Desembargador Pedro Celso Dal Pra. Julgado em 27 nov. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Porto Alegre, 01 dez. 2023.
[7] Tese firmada no Tema Repetitivo 981 pelo STJ: “O redirecionamento da execução fiscal, quando fundado na dissolução irregular da pessoa jurídica executada ou na presunção de sua ocorrência, pode ser autorizado contra o sócio ou o terceiro não sócio, com poderes de administração na data em que configurada ou presumida a dissolução irregular, ainda que não tenha exercido poderes de gerência quando ocorrido o fato gerador do tributo não adimplido, conforme art. 135, III, do CTN.”.
[8] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Trigésima Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n. 2098872-45.2025.8.26.0000. Relatora:
Desembargadora Maria Lúcia Pizzotti. Julgado em 12 jun. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, São Paulo, 12 jun. 2025.
[9] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Vigésima Terceira Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n. 2381073-47.2024.8.26.0000. Relator: Desembargador Jorge Tosta. Julgado em 24 jan. 2025. Diário de Justiça Eletrônico, São Paulo, 24 jan. 2025.
[10] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Nona Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0008105-42.2023.8.16.0000. Relator: Desembargador Roberto Portugal Bacellar. Julgado em 31 ago. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Curitiba, 04 set. 2023.
[11] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR). Décima Sexta Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 0075374-35.2022.8.16.0000. Relatora: Juíza Substituta Luciane Bortoleto. Julgado em 30 jul. 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Curitiba, 31 jul. 2023.